Anúncio do Nobel da Paz ocorre no dia do aniversário de 70 anos de Putin

 Comitê Norueguês premia as ONGs Memorial, da Rússia, e Centro pelas Liberdades Civis, da Ucrânia, além de preso político bielorrusso. Anúncio coincide com o 70º aniversário do presidente russo. 


(crédito: Reprodução/AFP e arquivo pessoal)

Coincidência ou não, o anúncio do Comitê Nobel Norueguês veio no dia em que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, comemorava o 70º aniversário. O prêmio Nobel da Paz deste ano foi dividido em partes iguais entre o ativista pró-direitos humanos Ales Bialiatski, da Bielorrússia; e as organizações não governamentais Memorial (Rússia) e Centro pelas Liberdades Civis (Ucrânia). O Comitê afirmou que os laureados representam a sociedade civil em seus países.

“Por anos, eles têm promovido o direito a criticar o poder e a proteger os direitos fundamentais dos cidadãos. Eles fizeram um esforço notável para documentar crimes de guerra, abusos dos direitos humanos e abusos de poder. Juntos, demonstraram a importância da sociedade civil para a paz e a democracia”, declarou Berit Reiss-Andersen, presidente do Comitê.

Segundo Reiss-Andersen, a intenção de premiar o trio foi destacar a importância da sociedade civil e as escolhas de indivíduos de se levantarem contra as injustiças e contra a guerra. “Nós damos o prêmio a pessoas que são campeãs da paz, não damos o prêmio contra ninguém. (…) Esse prêmio não se dirige ao presidente Putin, nem ao seu aniversário, nem em qualquer outro sentido — exceto que seu governo, como o da Bielorrússia, representa um governo autoritário, que reprime ativistas de direitos humanos.”

Pioneiro do movimento pró-democracia surgido na Bielorrússia, nos anos 1980, Bialiatski fundou a ONG Viasna (“Primavera”), em 1996, após emendas constitucionais que conferiram poderes ditatoriais ao presidente. “Ele dedicou a vida para promover a democracia e o desenvolvimento pacífico em seu país natal”, ressaltou o Comitê.

Bialiatski forneceu apoio aos manifestantes presos e a seus familiares, e passou a documentar a tortura contra os prisioneiros políticos. Ele próprio ficou detido entre 2011 e 2014; em julho de 2020, voltou a ser preso. Até hoje aguarda julgamento.

A Memorial foi fundada em 1987 por ativistas da ex-União Soviética com o propósito de garantir que as vítimas do regime comunista jamais fossem esquecidas. Com o colapso do bloco soviético, tornou-se a maior organização do tipo na Rússia. Além de registrar as vítimas do stalinismo, compila informações sobre opressão política e violações dos direitos humanos. Desde 2007, o Centro pelas Liberdades Civis tem avançado nos temas dos direitos humanos e da democracia. Após a invasão da Ucrânia pela Rússia, reuniu evidências de crimes de guerra.

Inspiração

Integrante da diretoria e chefe da equipe jurídica da Memorial, Nataliya Sekretareva admitiu à reportagem, por telefone, que não esperava a honraria. “Há tantas coisas horríveis acontecendo que lembrar que éramos cotados ao prêmio não estava entre as prioridades. Acho que, se a democracia é um processo que você nunca alcançará, o Nobel é uma inspiração para que continuemos o nosso trabalho”, desabafou. Ela lembrou que o Comitê descartou que a escolha dos laureados seja uma mensagem política para Putin. “É um bom presente para o nosso presidente, pois hoje é o aniversário dele”, ironizou a ativista, que desde março mora em São Paulo.

Nataliya descarta que o prêmio coloque pressão sobre o Kremlin. “Talvez torne as coisas piores ou um pouco melhores para nós, da Memorial. Em termos de relações com o governo russo, não muda muita coisa. Por exemplo, após o anúncio do Nobel, o tribunal ordenou a acusação contra um escritório que pertence à Memorial, no centro de Moscou”, explicou.

De acordo com ela, não existe democracia na Rússia. “Ela ficou apenas no papel. A Constituição está extremamente defeituosa, especialmente após as emendas de 2020. Não há liberdade de expressão e de imprensa, nem eleições livres. Até o protesto de um homem só está proibido.” Oleg Orlov, líder histórico da Memorial, disse à reportagem, por telefone, que não se interessa em como Putin reagiria ao Nobel (leia Três perguntas para).

Em 8 de setembro de 2020, cerca de 10 meses antes de ser preso, sob a acusação de “financiamento de ações que violam a ordem pública”, Ales Bialiatski falou ao Correio. “O regime de Putin está dependente e ligado ao regime de Lukashenko. Por isso, Putin teme a queda de Lukashenko”, afirmou, enquanto protestos se espalhavam pela Bielorrússia.”A grande ditadura da Rússia ajuda a pequena ditadura da Bielorrússia”, acrescentou. Na ocasião, ele disse que cerca de 200 prisioneiros políticos estavam trancafiados em Minsk e no interior. “Mesmo assim, as pessoas querem mudança em meu país. É por isso que a luta continua e o movimento democrático em nosso país ganha novas lideranças”, lembrou.

A reportagem também havia conversado, em 18 de março passado, com a advogada Oleksandra Matviichuk, líder do Centro pelas Liberdades Civis, em Kiev. “Farei o melhor para ver Putin e seus asseclas ante o Tribunal Penal Internacional”, prometeu.

A Bielorrússia não demorou em desqualificar o Nobel. “Nos últimos anos, as decisões — e estamos falando do Prêmio da Paz — são tão politizadas que Alfred Nobel está se revirando no túmulo”, reagiu no Twitter o porta-voz da diplomacia bielorrussa, Anatoly Glaz. Mykhailo Podolyak, conselheiro do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, criticou a escolha. “O Comitê Nobel tem uma compreensão interessante da palavra ‘paz’, se representantes de dois países que atacaram um terceiro recebem (o prêmio).”

Sentido político

Professor de história da Universidade de São Paulo (USP), Angelo Segrillo avaliou que o Nobel deste ano tem um significado político. “Claramente é uma mensaqem política, justificada por eles no sentido de a paz estar sob ameaça, talvez até em termos nucleares e que, nesse momento, é preciso firmar posição”, disse à reportagem. “Para o Comitê, Putin é o agressor. Como a Rússia tem grande influência na Bielorrússia, eles pegaram as três repúblicas eslavas da antiga União Soviética. A mensagem é inequívoca: há um lado errado. Eles creem que o fortalecimento da sociedade civil fortalece a chance de paz. O Comitê contemplou os três lados — Rússia, Ucrânia e Bielorrússia — e premiou aqueles que acha que trabalham pela paz.”

Três perguntas para…

Para o senhor, o que representa o reconhecimento do Nobel da Paz?

A atribuição deste prêmio a três laureados de três países simboliza a unidade da comunidade dos direitos humanos, apesar do fato de que regimes ditatoriais, autoritários e totalitários desejam romper esses laços.

Como avalia a escolha pelos laureados?

Ales Bialiatski, meu amigo e colega da Bielorrússia, é um maravilhoso ativista dos direitos humanos e líder de longa data do “Viasna”. Ele foi preso pelo regime de Lukashenko pela segunda vez. E sua escolha consciente foi a de prosseguir com a luta, percebendo o que ameaçava. Fui ao seu julgamento em Minsk quando ele foi detido pela primeira vez. Agora, ele enfrenta um extenso tempo de prisão apenas por seu trabalho pelos direitos humanos. Ele veio a Moscou quando eu estava sendo julgado. Ele veio à Rússia quando outros ativistas dos direitos humanos eram julgados. O Centro pelas Liberdades Civis e a Memorial têm laços de amizade e de trabalho de longa data. Agora, nossas posições sobre o tema da agressão russa à Ucrânia absolutamente coincidem.

Que mensagem o Nobel da Paz envia para Putin?

Eu e meus colegas não esperávamos por isso. Não esperávamos o que aconteceu hoje (ontem). Eu estava convencido de que era um trote, que trapaceiros brincavam comigo, quando recebi o telefonema do Comitê Nobel. Não estou absolutamente interessado na questão sobre como Vladimir Putin recebeu a notícia de que a Memorial foi laureada. Entendo muito bem que os propagandistas de Putin jogarão lama sobre nós nos canais oficiais da TV pública. Não temos outros aqui na Rússia. 

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